A seguinte mensagem é a décima terceira comunicação da série Perguntas
Frequentes em Bioestatística, da autoria de membros do Laboratório de
Bioestatística e Informática Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de
Coimbra. Pretende-se fomentar uma discussão sobre as melhores práticas
estatísticas na área da saúde.
Miguel Patrício e Francisco Caramelo
Um estudo clínico é norteado pela questão de investigação a que se procura
responder. Distinguem-se assim duas fases:
- Na fase de desenho de estudo, a questão de investigação é formulada e define-se o protocolo que se seguirá para recolher e analisar os dados que lhe poderão responder;
- No fase do estudo clínico, aplica-se o protocolo: efectuam-se as medições planeadas, analizam-se os dados, discutem-se e apresentam-se os resultados.
O desenho do estudo é a etapa crucial de planeamento que antecede um estudo clínico. Deverão definir-se todos os aspectos do protocolo, como o tipo de estudo, critérios de inclusão e exclusão, método de amostragem, tamanho da amostra, medidas a efectuar, estrutura da base de dados ou plano de análise estatística previsto. O protocolo deverá ser plasmado num documento de uma forma rigorosa, rígida e completamente objectiva: todos os passos de obtenção e armazenamento de dados definidos deverão ser seguidos aquando da realização do estudo clínico, sem qualquer desvio[1].
A fase de desenho de estudo pode ser, em simultâneo, entusiasmante e angustiante.
De facto, há a liberdade de se definir o que se pretende vir a investigar.
Porém, com esta vem a dificuldade de encontrar uma boa questão de investigação,
que garanta sucesso. Não é fácil fazê-lo e a margem de erro é muito pequena: a
escolha de uma má questão de investigação irá ter repercussões ao longo do
estudo, ao nível dos resultados obtidos e até na forma como os mesmos serão recebidos
pela comunidade científica.
Uma vez encontrada uma questão de investigação, há alguns critérios para
avaliar a qualidade da mesma, que deverá ser[2]:
- Feasible (exequível) - de nada valerá formular uma questão de investigação se não for possível obter, com os recursos disponíveis, uma resposta esclarecedora;
- Interesting (interessante) - a questão de investigação deve ser motivante, para quem vai desenhar e implementar o estudo. Se não o for, o nível de esforço a que a investigação científica obriga dificilmente será comportável e recompensante;
- Novel (nova) - o estudo deverá acrescentar algo ao que já é sabido na ciência[3];
- Ethical (ética) - apenas será aceitável seguir com o estudo se este não transgredir princípios éticos;
- Relevant (relevante) - mesmo que se faça um estudo perfeito, se os resultados não tiverem qualquer interesse e pertinência, perde-se tempo e dinheiro.
Encontrar uma questão de investigação que reúna todas as condições para se
ter sucesso não é fácil e exige muito trabalho. Há, porém, fontes de boas
questões. A primeira destas é a literatura: nos artigos já publicados os
autores apresentam o estado actual da investigação no seu campo e é muito
frequente indicarem questões que estão por resolver. Qualquer candidata a
questão de investigação deverá ser analisada tendo por base o que a literatura
reporta. Também é frequente que surjam boas questões de investigação a quem já
trabalha numa determinada área. A experiência, intuição (e conhecimento do que
já foi feito e do que falta fazer) destes investigadores poderá ser
aproveitada. Assim, qualquer candidata a questão de investigação deverá passar
por um processo de depuração, em que a mesma é discutida com outros investigadores
e avaliada face à literatura, ver Figura 1. Seguidamente, terá de definir-se
uma estratégia (noutras palavras, um rascunho de um protocolo) para responder à
questão, fazendo uma previsão dos dados que é necessário obter, das medidas que
se poderão efectuar, dos custos envolvidos e todos os demais aspectos
necessários para a concretização de um estudo que permita obter a resposta
pretendida.
Figura 1. Processo de escolha de uma boa questão de investigação.
A questão de investigação deverá ser avaliada em função do seu interesse,
novidade e relevância. A estratégia poderá ser avaliada em função da sua
exequibilidade e considerando princípios éticos e do método científico[4].
Uma vez tendo-se uma boa questão e uma boa estratégia, urge responder a uma
pergunta crucial: a análise dos dados prevista pela estratégia permitirá
responder à questão de forma cabal? Se sim, poderá definir-se o protocolo de
estudo de forma precisa, reavaliar se ainda se considera estar perante uma boa
questão de investigação e uma boa estratégia e em caso positivo avançar-se para
o estudo.
Na maioria dos casos, a escolha de uma questão de investigação é um processo
iterativo longo. Muitas vezes não se sabe se se está perante uma boa questão
antes de a explorar: formulando-a, lendo-a à luz da literatura, discutindo-a
com outras pessoas, avaliando possíveis métodos de encontrar uma resposta à
mesma. Todo este processo pode ser longo e até frustrante e cansativo. Porém a
escolha de uma boa questão de investigação e o planeamento do protocolo são
cruciais para o sucesso de qualquer estudo. É importante, em todos os momentos,
saber manter o foco: a quantidade de questões interessantes no mundo é inumerável,
contudo num estudo particular apenas quereremos considerar uma. Haverá outras
certamente interessantes, mas apenas se pode responder de forma conclusiva a
uma questão de cada vez.
Note-se que a insistência na necessidade de se definir apenas uma questão
de investigação não implica que não se possa responder a outras questões num
mesmo estudo. Pode, mas serão secundárias e deverão ser consideradas como tal.
Mais ainda, as questões secundárias deverão ter uma relação com a questão
principal, não podendo ser desligadas da mesma. Este é um princípio de economia
de recursos e de foco sobre o que interessa.
FAQ:
1- Em que consiste um plano de análise estatística das variáveis?
Para além de se definir claramente a questão de investigação, deverá
definir-se também a medida principal e o teste estatístico que mais
directamente responderá à questão de investigação. Este último teste fará parte
do plano de análise estatística das variáveis. Neste constarão todas as
técnicas de obtenção de resultados a partir dos dados.
2- Não é impossível, na fase do plano de estudos, ainda não se conhecendo
qualquer resultado, definir um plano de análise estatística dos resultados?
Não. Se for impossível é porque a questão de investigação e toda a sua
envolvente não estão bem definidas - aliás, em estudos que careçam de um cálculo
do tamanho da amostra é essencial definir a técnica estatística a aplicar que
mais directamente consegue, a partir dos dados recolhidos, responder à questão
de investigação. No entanto, também é verdade que na fase da análise
estatística dos dados pode haver necessidade de efectuar alguma análise que não
foi prevista a priori. Mas tal deverá
apenas acontecer se surgir a necessidade de explicar ou descrever alguma
relação surpreendente ou interessante que surja nos resultados e que se
relacione directamente com os objectivos do trabalho.
3- Não se deve aproveitar o ensejo do estudo para recolher tanta informação
quanto possível, de forma a responder a questões futuras que não tenham sido
tidas em conta?
Não. Para a realização de um estudo, tudo o que seja a mais tem custos de
recursos humanos, recursos materiais e tempo. A chance desses dados espúrios
virem a ser analisados é diminuta, o que aliado ao facto de haver uma altíssima
probabilidade de não haver potência suficiente para responder a questões
provenientes dessa informação torna muito dispendioso e, acima de tudo,
completamente inconsequente, recolher dados não relacionados com a questão
principal.
Deverá considerar-se, porém, uma excepção: é lícito recolher dados de
carácter exploratório, úteis para definir estudos futuros. Estes não serão
considerados, porém, como dados do estudo em questão.
4- No meu estudo eu consigo detectar duas questões principais, é possível?
Assim sendo significa que tem dois estudos e não um. Para cada um desses
estudos deve definir a medida principal e os testes estatísticos apropriados;
com base nesta informação calcular o tamanho de cada uma das duas amostras
suficientes para responder de forma cabal a cada uma das questões em cada
estudo.
Na próxima edição do Perguntas Frequentes em Bioestatística: “Com a
estatística também se erra?”
[1] Poderá considerar-se como excepção
os estudos clínicos exploratórios, em que não é ainda claro o protocolo a
seguir e se admite que o mesmo poderá ir sendo alterado à medida que se obtêm
resultados preliminares. Poderá também ter-se um desenho de estudo adaptativo,
onde são considerados os diferentes cenários e limites, ver Lorch U, O’Kane M,
Taubel J. Three steps to writing adaptive study protocols in the early phase
clinical development of new medicines. BMC Medical Research Methodology. 2014.
[2] De acordo com os critérios FINER,
sugeridos em Hulley S, Cummings S, Browner W, et al. Designing clinical
research. 3rd ed. Philadelphia (PA): Lippincott Williams and Wilkins; 2007.
[3] A replicação de estudos é
importante. Mas também esta oferece novidade, a menos que seja a replicação de
estudos já absolutamente consensuais e metodologicamente correctos.
[4] Deverá, por exemplo, avaliar-se se a
estratégia de resposta à questão é replicável ou se permite obter resultados
robustos. Os resultados terão de ser credíveis e, por isso, reprodutíveis por
outros investigadores.